Os paradigmas do arcabouço regulatório do setor elétrico


A energia tornou-se um elemento fundamental para a humanidade. Impossível pensar no mundo sem energia. Sem ela, anularíamos o progresso das últimas décadas e voltaríamos, no mínimo, a primeira revolução industrial. Nada mais natural que os governos adotem medidas regulatórias que assegurem o suprimento de energia e planejem novas fontes de energia para garantir o desenvolvimento econômico, funcionamento dos serviços existentes e melhor qualidade de vida para as pessoas. No passado, era sensato pensar em ter gigantescas fontes de energia para abastecer enormes comunidades, usando o argumento de economia de escala. As tecnologias disponíveis e baratas justificavam o uso do carvão, petróleo e água. Outras tecnologias foram incluídas, como energia nuclear, eólica, solar e biomassa. Para levar a energia produzida para as regiões de uso são utilizadas longas linhas de transmissão e depois distribuídas por sistemas de transmissão locais até a unidade consumidora. Este paradigma de produção, transmissão e distribuição ainda persiste até hoje. As agências reguladoras, como a Aneel, definem as regras de operação e definem políticas de expansão, desafiando as empresas do setor elétrico a buscarem alternativas para redução de custo. Ao que parece, o rápido crescimento do mercado que demanda cada vez mais energia, restrições de uso de recursos naturais escassos ou que destroem o planeta, e novas tecnologias de geração de energia distribuída tornaram o atual modelo do setor elétrico obsoleto, sendo necessário sua revisão.

O avanço das tecnologias de geração de energia distribuída, principalmente a energia solar, e baterias de alto desempenho, permite que pessoas e empresas gerem sua própria energia no local, ou próximo dele, para autoconsumo. Uma das empresas disruptivas do setor é a Tesla com seus carros elétricos, baterias residenciais e telhas que produzem energia com preços competitivos com as telhas convencionais. As novas tecnologias permitem a criação de novos modelos de negócios, destruindo o modelo tradicional.

A indústria está atravessando uma nova revolução industrial, com a extrema automação de suas operações, onde a energia de qualidade é imprescindível, não podendo ficar à mercê das decisões e serviços das concessionárias de energia. A solução é investir na autoprodução de energia.

A norma regulatória nº 687 que prevê a autoprodução de energia, permite a geração de até 5MW de energia das empresas e indivíduos em qualquer local dentro da área de concessão da distribuidora de energia, com o direito de acoplamento ao sistema de distribuição de energia. Isto cria uma mudança radical no modelo de negócio, exigindo a mudança do modelo regulatório para manter viável a operação das concessionárias de energia.

Para empresas e famílias que residem em casas é mais fácil implantar sistemas de autoprodução de energia, como painéis fotovoltaicos e, futuramente, substituir as telhas convencionais por telhas que produzem energia. O desafio será para quem vive nos grandes centros urbanos, onde as ações deverão se concentrar na eficiência energética.

O Ministério de Minas e Energia brasileiro prevendo estas mudanças lançou em julho de 2017 uma consulta pública para coletar ideias para a reorganização do setor elétrico. No texto inicial liberado para a sociedade, pode-se notar que alguns paradigmas do atual modelo ainda estão presentes. O documento apresenta os princípios que devem reger o setor elétrico, a saber: eficiência, equidade e sustentabilidade.

Segundo o documento, a eficiência do setor elétrico deve garantir que a sociedade obtenha o máximo benefício líquido dos recursos empregados no setor elétrico, considerando os custos e ganhos socioambientais. Para conseguir uma relação custo-benefício atraente para o uso de energia fotovoltaica serão necessários incentivos fiscais do governo, assim como foi feito na Alemanha. Isto significa menor receita em impostos, tanto nas transações de compra de equipamentos como nos impostos de consumo de energia, que reduzirão com o uso intensivo da autoprodução de energia. Esta perda de arrecadação poderá ser compensada com o aumento dos empregos no setor de energia fotovoltaica, desde a produção, instalação e manutenção.

Com o aumento do número de instalações de autoprodução de energia e acoplamento no sistema de distribuição, as concessionárias de energia terão que investir em sistemas de automação, as chamadas redes inteligentes de energia – Smart Grid. A introdução em larga escala de automação, reduzirá o número de empregados do setor elétrico. Que poderão ser absorvidos pelo setor fotovoltaico.

A questão é saber se os governos, principalmente os estaduais, suportarão uma redução significativa dos tributos.

O segundo princípio que o documento apresenta é o da equidade, que visa garantir que tipos específicos de bens ou serviços estejam disponíveis em níveis adequados para a sociedade como um todo ou para estratos específicos da sociedade. Isto implica na isonomia de tratamento entre agentes de cada segmento da cadeia de valor, incluindo o segmento de consumo. Por este princípio, não é possível aplicar incentivos fiscais para a aquisição de sistemas de autoprodução de energia para os consumidores, sem oferecer os mesmos incentivos para as outras empresas do setor de energia. Com isto corre-se o risco de travar e, como é normal no pais, levar a judicialização de medidas de transformação do modelo.

O terceiro princípio é a sustentabilidade do marco normativo, que visa garantir que o próprio arcabouço normativo do setor elétrico seja sustentável comercialmente. Aqui se aplica o paradigma do ROI – Retorno do Investimento – onde os projetos só são viabilizados se o retorno do capital for atrativo.

Atualmente, a expansão do Smart Grid é inibida pela recusa da Aneel de repassar os altos investimentos na automação da rede para a tarifa. Neste estágio de expansão da autoprodução de energia, como garantir que os retornos financeiros serão alcançados sem uma regulamentação que garanta receita para as atuais concessionárias de energia?

Ou seja, os princípios são coerentes, porém criam um paradoxo que pode não resultar em ações concretas de mudança significativas do atual modelo do setor elétricos. Se isto acontecer, aumentará o gap da nossa infraestrutura e continuará sendo o gargalo para o nosso crescimento econômico.

Não podemos perder a chance de colaborar na transformação do modelo do setor elétrico. Criei um fórum de discussão no Fórum Eficiência Energética (www.forumeficienciaenergetica.com.br) para coletar ideias, discuti-las e redigir sugestões para o aperfeiçoamento do marco regulatório do setor elétrico.